10/07/2008

O último tango en la Calle

O dia deixava seus últimos raios avermelhados estendidos nas nuvens que se amontoavam ao final das montanhas numa última e desesperada tentativa de não ir embora.

Nos fios dos postes de energia elétrica, centenas de pássaros afileiram-se, indo e vindo num ensurdecedor coro ritmado que acontece durante toda a primavera neste mesmo horário.
Num mesmo, porém diferente ritual, ela vai até a sacada da sala e senta-se na cadeira coberta por uma manta trazida de sua última viagem à Argentina.

Num movimento inconsciente, acende um cigarro e se larga em seus milhares de pensamentos tão ensurdecedores quanto os pássaros a sua frente. Ao mesmo tempo em que dá uma baforada cinzenta, leva a outra mão na busca de sua lata de chá mate gelado.

Seu estado de ausência é quebrado por um carro que passa pela rua tocando uma música alta que lhe chama a atenção. Será que ouvira bem? Será que esta música não saíra de sua mente? Não... Era real, aquele carro modelo antigo com a cor desgastada pelo sol despejava nas ruas num volume razoavelmente alto um autêntico tango daqueles cantado por Gardel.

Sua mente rodou por um instante enquanto a troca de imagens, sensações e percepções mudavam na memória como se muda um cenário em uma peça de teatro.
Viu-se em sua terra natal, sentada em um dos inúmeros cafés existentes na rua principal e onde o tango era mais que uma canção de lamentos e amores perdidos, era também o ar respirado pela própria cidade, uma digital, um código do DNA portenho.

Dizem que na Argentina as primeiras palavras de um niño são papá, mamá e Gardel, tamanha a identidade dessa terra com seu ídolo falecido há mais de 40 anos e do ritmo que o consagrou e que o mesmo eternizou.

Ela mesma era uma dessas incontáveis portenhas que possuíra um dia uma coleção de filmes, vinis e fotos de Carlos Gardel. Hoje, com o passar dos anos, da vida que atropela e da mudança de país, nada mais lhe resta desse acervo que outrora lhe foi motivo de orgulho e de status entre seus amigos.

Volta um pouco à realidade ao sentir uma salgada lágrima escorrendo por seu rosto marcado pelo tempo. Um leve sorriso se faz em seus lábios ao recordar de um amor impossível, que logo é sucumbido pela tragada de seu cigarro. Leva a outra mão na busca de sua lata de chá mate gelado, enquanto se despede com um olhar saudoso do tango de sua juventude, que a esse instante já dobra a esquina levado pelo velho carro tão desbotado quanto as recordações de seu passado.

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